O texto estabelece uma distino entre falsos e superficiais multiculturalismo e multilinguismo (por isso, “verniz”) e um necessrio multiculturalismo e multilinguismo militante. O autor assume que a sobrevivncia das culturas e lnguas minoritrias, fortemente ameaadas por lnguas oficiais e por uma indiscriminada e crescente invaso cultural (da qual faz parte a prpria “escola diferenciada”) depende exclusivamente de uma postura pr-ativa das comunidades concernidas. A reflexo discute esses conceitos.
Multiculturalismo em contexto de violncia cultural
Em 1970 o antroplogo Darcy Ribeiro publicou uma obra valiosssima, que se pode mesmo chamar de magistral: “Os ndios e a civilizao. A integrao das populaes indgenas no Brasil moderno” (Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira).1 Embora recuando, vez ou outra, ao sculo XIX, a obra basicamente trata do que sucedeu aos povos indgenas no Brasil na primeira metade do sculo XX. Novas geraes de antroplogos, que sucederam gerao de Darcy, com frequncia menosprezaram o valor daquela obra, acusando o autor de neo-evolucionista ou outros eptetos do gnero. Uma das coisas que, aparentemente, mais irritou a sensibilidade antropolgico-indigenista das dcadas seguintes (anos 80 e 90) foram os prognsticos de Darcy Ribeiro com respeito ao futuro dos povos indgenas no Brasil, que esto bem representados na passagem que resumo abaixo:
A expanso civilizadora se apresenta anlise como um conjunto uniforme de fatores dissociativos aos quais cada tribo pode reagir diferencialmente, mas aos quais reagir sempre e necessariamente. Trs so as reaes possveis para os indgenas. A fuga para territrios ermos, com o que apenas adiam o enfrentamento. A reao hostil aos invasores, que transtorna toda a vida tribal pela imposio de um estado de guerra permanente em que o funcionamento de muitas instituies se torna invivel e outras tm de ser dramaticamente redefinidas. A sada final a aceitao do convvio porque este representa, efetivamente, uma fatalidade inelutvel. (…)
Uma vez estabelecido o convvio e medida em que as relaes se amidam e se estreitam, os ndios se veem submetidos a uma srie de desafios, todos eles conducentes a transfiguraes sucessivas no seu modo de ser e de viver. (…) Os desafios cruciais com que se defrontam so os de resguardar sua sobrevivncia como contingentes humanos seriamente ameaados de extermnio; o de resguardar na medida do possvel, sua identidade e autonomia tnica a fim de no se verem abruptamente subjugados por agentes da sociedade nacional, a cujos desgnios tenham de submeter seu prprio destino. E, finalmente, o de assegurar a continuidade de sua vida cultural, mediante alteraes estratgicas que evitem a desintegrao do seu sistema associativo e a desmoralizao do seu corpo de crenas e valores. (…)
No plano ideolgico, o problema mais complexo, dada a multiplicidade das possveis representaes mentais dos mesmos modos de existncia. Ainda assim, observam-se tambm aqui, uniformidades visveis, tanto na ideologia da sociedade nacional que se expande, quanto na conformao ideolgica dos ndios aculturados. Estes sero cada vez mais parecidos uns com os outros, enquanto ndios genricos e cada vez mais distanciados do que eram originalmente, porque seu denominador comum passa a ser representado pelo que absorveram de uma mesma fonte externa e porque todos experimentam as mesmas compulses e os mesmos desafios de redefinio do seu corpo de crenas e valores. (Ribeiro 1986:220-222 – grifos meus).
Foi a “profecia” do “ndio genrico” de Darcy que lhe atraiu a antipatia da antropologia militante e do indigenismo alternativo que, por um lado, no foram capazes de distinguir, na obra citada, anlise e prognstico, de texto programtico ou propositivo (ou seja: Darcy no preconizava a existncia de um ndio genrico; ele previa sua existncia futura); e por outro lado, aqueles crticos de Darcy mostravam, com frequncia, sua incapacidade de distinguir, no seu prprio trabalho, anlise da realidade e desejos (eventualmente utpicos); diagnstico e projeto. O fato que o “ndio genrico” j est a, no digo nossa porta, mas na nossa mdia, inclusive ocupando espaos em tribunas internacionais; e nas aldeias, vai se ampliando a converso das etnicidade a essa figura, cada vez mais por ao de programas de ensino escolar (mesmo ditos “diferenciados”). A propsito, em um recente trabalho em que chamamos a ateno para a “secularizao” da juventude Mby-Guarani, a antroploga Juracilda Veiga e eu escrevemos:
… na sequncia das “campanhas educacionais” compulsrias e pautadas na substituio de lnguas (processo que, no Brasil, foi capitaneado pelo Summer Institute of Linguistics em colaborao com a Funai nas dcadas de 1970 e 1980 sobretudo), assistimos, aps a Constituio de 1988, a uma “cruzada” do “ensino diferenciado”, que de forma bem mais sutil, pode resultar tambm em grandes prejuzos para as culturas envolvidas. (Veiga & D?Angelis 2011:64).
A pergunta que sobressai, de tudo isso, : onde est, onde fica ou onde ficar o multiculturalismo?
Ignorar que as culturas so dinmicas, no se coloca, por ser fato bvio. Mas ignorar que as compulses dissociativas e a invaso cultural so o padro e o elemento comum das relaes de contato de qualquer sociedade indgena minoritria com a sociedade nacional brasileira, fechar os olhos s mudanas que, fossem outras as circunstncias (e, de fato, apenas em outras circunstncias), poderiam ser recusadas pelos povos indgenas. O grande equvoco est, justamente, em confundir mudanas compulsrias geradas e foradas por prticas de invaso cultural com o dinamismo (interno) da cultura local. E como j alertei – com outras palavras, em mais de uma ocasio – o suicdio cultural ou tnico s pode ser chamado de “protagonismo”2 no mesmo sentido lato em que ao nufrago tambm se possa atribuir o “protagonismo” da sua morte em alto mar, pelo fato de que ele tomou a deciso de embarcar em um determinado navio (mesmo que excelente) para fazer determinada viagem (mesmo que trivial e considerada totalmente segura).
Hoje em dia, jovens indgenas so formados como professores de suas comunidades em programas de formao que so conduzidos por no-ndios (que, afinal, so os que podem entender de “escola”, uma instituio “ocidental” levada para dentro das aldeias). So no-ndios “do bem”, simpticos e apoiadores das lutas dos indgenas, interessados na sobrevivncia cultural e lingustica dessas sociedades minoritrias, mas… so no-ndios.
No j referido artigo sobre a “secularizao” da juventude Mby, escrevemos:
O mais grave resultado da frequncia dos jovens Guarani aos programas de formao de professores indgenas dirigidos pelas Secretarias Estaduais um crescente e claro processo que estamos denominando de “secularizao”: jovens indgenas que cada vez mais olham para os conhecimentos e valores tradicionais de suas culturas como se fossem antroplogos, revelando-se desenraizados delas pouco a pouco, tornando-se “investigadores” e “pesquisadores” da cultura de sua gente, passando a “conhec-las” num esforo de “valorizao” da cultura (reificada), com a qual vo perdendo lealdade. (Veiga & D?Angelis 2011:67).